A palavra. Forma estendida. Entendida e servida. Servida à fome. A palavra ceia. Para matar a fome. O rito. Ritual da mesa. Posta. Ao redor os corpos. Organização do corpo-mesa. E nela eles. Objetos da nossa fome. Da nossa fome de significar. Estratos do nosso estar na mesa. Estáticos. Calmos. Senhores do território. Da mesa posta. Dóceis. Todos. Já não há distinção. Somos todos. Eles. Os objetos. Nós os sujeitos. Só a relação. A força. O encontro. O agenciamento. Acontecimento.
Acontecer é criar. Representar já não é possível. Exaurido o antigo ritual. A sacralização do objeto. Da palavra que recobre o fato. E também o fato que identifica o objeto. A coisa.
Cartografar o movimento é necessário. O fluxo do passo que se perde a espreita do sangue, do grito, do objeto outro e mesmo. Os olhos buscam ou são buscados. Atentos aos corpos das coisas que vibram perigosamente. Forças. Passos da indecisão. A não-certeza é bem vinda. O delírio da imagem em excesso. Sufocação. Porre de cor,forma, utilidade, peso e medida. Imagem-prisão. Como a palavra que a sustenta. Em fila. Em cópias. Simulacros. A imagem morta na estante. Morta na indiferença dos corpos vários e tantos. Imagem-multidão. Corpo-massa. Todos em relação ao objeto. A imagem da força. Agora nova.
Há uma fome. Vontade de potência. Corpo sem órgãos. Ovo vibrante que não se permite delinear. Configurar. Resistência.
Há uma fome disforme. Dentes que buscam a própria mesa. Antropofagia do objeto. Duplo roubo. Na mesa. Resistir à mesa e sua circunstancia. Renegar a mesa e o território dado, posto. Pensar a não-mesa e o que dela não se pensa.
A ceia.
Na boca. Escorrendo inusitado a seiva de um outro objeto. De outra forma. Quebrando. O régio pensamento. O único entendimento. Pulverizando o uno na possibilidade do absurdo. Na intenção da perversão. Perverter o corpo da ceia. Perverter o sentir da ceia.
Dividir o doce bolo de nossos conceitos já prontos com serrote e força. A delicadeza do caos. Na boca. Sorver a doçura do deslocamento do absurdo. O do olho desconfiado. Do nojo que se identifica. E pensar esse nojo. Pensar o deslocamento. Desterritorializar. Na bacia onde lavamos a cara, o rosto, a pele, a carne. Na bacia grotesca comer o pão. Com a mão. Com espanto. Espantar a formação. A determinação. Renegar então essa rima pobre. Eco. Despir o ego. O sujeito. A identidade.
O objeto vibra. Na mesa. E em cada boca. Rega uma possibilidade. A ceia jardim. Jardim do absurdo que cria pensamento que pensa o pensar.
A mesa já não é limite. A mesa é fluída. Diluída na perversidade do deslocamento. É linha a mesa. De fuga. Mesa de comer devires. Mesa de se abandonar em fluxos. Mesa de comer-se. Mesa de devoração de “eus”.
Cada objeto é um “eu”. Cada palavra que o significa é um “eu”. E todos são prisão em sua forma determinada. Em sua utilidade definida.
Não mais. Agora o objeto é possibilidade. Agora é desconstrução. O objeto isento da mediação do nosso gosto, sentido. Intelecto.
Com Alice. Sentar à mesa do chá. Com Artaud cuspir no buraco o sangue e o corpo morto da significação. Com os Taraumaras dançar na borda do abismo. Mesa. Mesa abismo de sentidos. Mesa abismo da forma. Mesa-caos. Mesa-objeto sem órgãos.
O objeto livre da palavra. A utilidade posta em jogo. Inutilizar o estático do pensamento. Da imagem.
Mesa garganta. Mesa da devoração de nossas certezas congeladas.
Bom apetite…
Ronie Von Rosa Martins